Emanoel Araujo - Comentários críticos

Nunca houve o propósito, por parte do artista, de fazer arte africana baseada na iconografia remanescente. Todavia, não há como negar a semelhança ou a coincidência da composição abstrata de Emanoel Araujo com os padrões dos primitivos desenhos neolíticos da arte africana. Não somente os padrões, porém, sobretudo, as cores, que são aquelas da linguagem pictórica ainda hoje vista nos trajes, nas máscaras e nos ícones do ritual tribal. Não são necessariamente as cores simbólicas dos orixás afro-brasileiros. Seus relevos e estruturas tridimensionais não imitam o que os africanos fizeram, mas correspondem a solução compositivas e de ordenação plástica utilizadas na criatividade de base africana, remota ou remanescente.

Esta posição do artista brasileiro tem algo a ver com a dos iniciadores do cubismo, do Bateau Lavoir do princípio do século, quando se inspiraram na síntese formal da esculturas de Dogun. Ao nosso ver, Emanoel não procurou identificar sua condição étnica às raízes africanas. Ele é um artista do universo do conhecimento no mais amplo sentido do humanismo. A África lhe interessa na medida em que possa suprir motivações e atributos universais, do mesmo modo que ele também pesquisa e acolhe a linguagem estética de qualquer outra área. Não é, pois, um pesquisador de símbolos, mas, apenas, um artista criador capaz de juntar origens para alcançar o universo.

In: VALLADARES, Clarival do P. MUSEU DE ARTE DA BAHIA. Emanoel Araújo: relevos, esculturas e gravuras. Salvador/BA: 1979, [s.p.] [catálogo de exposição].
 

De início e até a abertura da década atual, Emanoel concentrou-se com quase absoluta exclusividade na gravura em madeira. Mas, se na técnica ele demonstrava parcimônia de predileção, no tema o seu percurso ao longo dos anos 60 caracterizou-se pela variabilidade e inquietação, como se tentasse muitas saída para encontrar uma saída. Assim, das referências diretas a manifestações regionais baianas ele se encaminhou para o uso de esquemas abstratos, sempre sob controle construtivo e isentos de qualquer sintoma de reflexo da realidade exterior. A meio caminho, passou por alguma pesquisa com o lirismo hierático dos gatos, o silêncio tenso de naturezas-mortas ou as implicações eróticas a partir da figura humana.

Até aí, tudo no seu trabalho se passava na superfície bidimensional da gravura. Nos últimos cinco ou seis anos, porém, veio ocorrendo uma inversão no processo criador de Emanoel Araujo. Em vez de concentrar-se numa só técnica e de realizá-la por rumos temáticos distintos, ele procurou somar à tarefa de gravador também a de escultor, ao mesmo tempo em que encontrava na construção com formas geométricas puras a sua linguagem característica. Foi um momento de salto do plano para o espaço tridimensional, primeiramente através de xilogravuras tornadas monumentais, com o relevo em branco (um de seus recursos expressivos mais frequentes) contrastando com o avivamento das áreas de cor e uma antes não utilizada incorporação de tiras de papel também gravadas se armando sobre a superfície de suporte do trabalho. Hoje, Emanoel Araujo gosta de apresentar, em cada exposição de que participa, não só a continuidade de seu interesse básico pela gravura, mas, igualmente, a nova produção em relevos e esculturas de madeira policromada ou concreto puro e simples.


In: PONTUAL, Roberto. MUSEU DE ARTE DA BAHIA. Emanoel Araújo: relevos, esculturas e gravuras. Salvador/BA: 1979, [s.p.] [catálogo de exposição].


No livro Bahia de Todos os Santos Jorge Amado faz um belo relato que faz referência a gravuras feitas pelo artista e doadas para o autor e sua mulher em 1968 cujo tema eram gatos.
 
A Noite dos Gatos

Uma confraria de gatos precipita-se contra o crepúsculo nos últimos telhados, nos desvão dos becos, nas sombras da cidade. A noite dos gatos vai começar, longa e lancinante, na crueldade e no dengue do amor. Uma máfia de gatos – a beleza explode nas sargetas, o felino corta o espaço vazio como um bólido, igual ao mais impossível bailarino. Na noite recém chegada com seu negrume e sua fome de amor, se eleva o miado da gata em cio. Não há no mundo clamor de tanto desespero, convite de tamanha violência, mais cariciosa voz, pedido mais dolente, apelo mais terrível. Toda ela, a pequena gata tímida, é agora apenas uma desabrochada flor de sexo rôta em desejo, aberta em raiva e em carícia. Tudo nela já desapareceu: o pelo lustroso e belo a preguiça da raça, a elegância, a gentileza, o orgulho. Sobraram apenas o desejo e o sexo rutilante – um raio de luz, uma faísca de incêndio.

No rumo desse incêndio se desenvolve a cruzada de gatos, vestidos todos com suas armaduras, suas roupas medievais, seu arnês de guerra. Surgem inesperados, num salto, numa aparição, num ai de agonia, e se entreolham maldosos, sábios, feros, machos, cheios de sutilezas e de força vital. A batalha está prestes a começar: a pequena gata expõe a flor do sexo queimando numa fogueira de punhais, roja pelo chão num convite manso e faz do seu miado a música mais doce e terna. Vêm os gatos, os invencíveis campeões. Mas deve restar apenas um.

Não pode haver no mundo batalha mais violenta, disputa mais terrível, mais feroz encontro, sangue mais generoso derramado em honra do desejo, do que essa batalha travada pelos gatos das primeiras às últimas goteiras da noite, na fímbria dos telhados, no mistério das sarjetas. Tudo se torna cor de sangue e cada miado de comando é respondido por um grito de aflição.

Depois, sem orelhas, quase cego, cortado de unhas e de dentes, o vencedor vem receber seu prêmio. Lá se vão pelos telhados, os dois noivos, a festa mais magnífica vai começar, o amor deslumbrante, sem censura nem limites, um amor de gatos em cio. Nada de mais sensual e denso, de mais tremendo e doce. Nas dobras da noite, nas esquinas de Exú, uma confraria de gatos na batalha e no amor.
Eis os gatos de Emanoel em seu mistério de madeira ou de metal, em sua ância, em seu desejo, em sua presença quase humana – criação de beleza e de mistério, a beleza e o mistério da Bahia.

(Jorge Amado)