Três Santos do Ciclo Junino fazem a festa no Museu Afro-Brasil

01 de junho de 2017
“O Balão vai subindo, vai caindo a garoa, o céu é tão lindo, a noite é tão boa...”  
(“Sonho de Papel” - Alberto Ribeiro – 1935)

O nome da festa vem de um único santo, por isso o termo “festa joanina” ou “junina” remeter à São João, mas acaso não se fizesse referência ou não se destacasse a presença de outros “santos populares” ou que não houvesse a presença de São Pedro e Santo Antônio neste ciclo, algumas festas juninas Brasil afora ficariam, no mínimo, incompletas. É por isso que nas festas de São João são chamados para a roda da fogueira principalmente São Pedro e Santo Antônio, para que assim o ciclo festivo possa estar mais complementado.
 
O ciclo junino é de fato realizado em dezenas de países ocidentais em junho. Seja pelas aproximações das festividades do solstício de verão na Europa pré-cristã e a de influência romana (e as festividades de Solstício de Inverno no hemisfério sul), seja pela crença na profecia relatada no livro de Lucas (1:36, 56-57) de que João nasceria na data que foi convencionada ser no dia 24 de Junho, pois seria exatamente seis meses antes do nascimento de Cristo, ou ainda, seja como concebemos hoje pelo que chamamos de “festa junina”, não importa, a “festa de São João” é, antes de tudo, uma celebração sincrética, com práticas culturais de diferentes povos que, no mundo medieval, se sincretizaram em torno do uso da fogueira comemorativa. 

Consta no Novo Testamento que João pregava no deserto e batizava no Rio Jordão. Ele chegou mesmo a batizar o próprio Cristo que, espontaneamente, procurou encontrar-se com João e ser batizado. A própria ideia da “fogueira de São João” pode ser deduzida daí, embora haja muitas outras lendas em torno dela: uns a associam às fogueiras de festas pagãs cristianizadas, outros à fogueira acendida (e o mastro erigido) no deserto para anunciar a seus parentes (incluindo Maria, mãe de Jesus) sobre o nascimento de João (o Batista), entre outras lendas mais ou menos divertidas; mas, de acordo com o relato bíblico, a relação entre a água do batismo de João e o fogo purificador que seria advindo de Jesus, encontram-se na imagem da “pomba”, que teria sobrevoado jesus no momento em que João o batizou (essa pomba seria desde ali, associada ao “espírito santo”). A respeito de Jesus, disse João: “em verdade, vos batizo com água, para o arrependimento; mas aquele que vem após mim é mais poderoso do que eu; cujas alparcas não sou digno de levar; ele vos batizará com o Espírito Santo, e com fogo. (Mateus 3:11). Daí a noção de “purificação” que a fogueira representa, e que na verdade viria ao encontro com várias tradições semitas e não-semitas da mesopotâmia.

São dezenas os países do ocidente e até no oriente médio nos quais se acende a fogueira para o chamado “Santo Festeiro”. Aqui no Brasil, do Oiapoque ao Chuí, as fogueiras se acendem todas nesse período e o espírito permanece em suma o mesmo, ainda que cada Estado da Federação tenha seus próprios costumes regionais, também aqui, a imagem da fogueira na festa unifica as celebrações do nascimento de João Batista, único santo celebrado tanto em seu nascimento 24 de junho quanto em seu martírio em prol de sua fé, datado de 29 de agosto. 

Na verdade, quem abre o ciclo dos santos juninos no dia 13 de junho é o santo casamenteiro Santo Antônio (1195-1231). O santo português do séc. XII que morreu aos 36 anos foi contemporâneo de São Francisco de Assis (1182-1226) e, como este, tinha como meta de vida a opção pelos pobres e oprimidos. Ele conquistou fama de casamenteiro depois de auxiliar inúmeras mulheres pobres que, sem condições de montar seu enxoval de casamento corriam para pedir-lhe seu auxílio. O casamento junino da quadrilha, a maçã do amor, a barraca do beijo, entre outros flertes ainda mais originais compõem alguns dos fragmentos da diversidade junina associadas ao santo português.  A solenidade de São Paulo e São Pedro nos dias 28 e 29 de junho faz ciclo girar. Pedro, o primeiro papa, foi pescador na Galileia antes de seguir seu destino como a “pedra” (significado de seu nome) que edificou a igreja cristã (Matheus 16:18). Em sua iconografia católica ele geralmente aparece portando duas chaves, uma que seria do “reino dos céus”, de acordo com a mitologia cristã e outra, a chave da Igreja ou do “reino” terreno. 

São inúmeros destaques que aumentam a diversidade cultural contida nesse curto ciclo junino. A quermesse, o arraial, a dança de fitas, os fogos de artifícios, a dança quadrilha, o uso de bandeiras e mastros dos santos são alguns dos elementos contidos nas festas juninas brasileiras. Mas aonde os africanismos brasileiros podem ser sentidos e até mesmo unificar parte da tradição das festas Juninas é na alimentação e nas comidas típicas do país. Em junho, o Nordeste é abençoado pelas chuvas. Não é à toa que, religiosamente, o sertão e o agreste comemoram enormemente as festividades de São João como renovação, em agradecimento pelas boas colheitas no roçado e que, portanto, os desdobramentos originais das festas nordestinas se encadeiam, em grande parte, a partir destes fatos, em que as comidas típicas do período fazem da Festa de São João nordestina uma reserva para os dias de agradecimento pela alcançada graça da abundância de alimentos, conduzida por inúmeros tipos de comemorações. 

Do ponto de vista alimentar, o São João nordestino é o mais regrado nas tradições afro-brasileiras comparativamente às festas em outras partes do país.  Assim, entre outras iguarias de época, citamos o mugunzá, que vem da língua angolana chamada quimbundo: mu’kunza significa “milho cozido” (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa — 2ª edição. [S.l.]: Nova Fronteira, 1986); o xerém, que é uma papa à base de farinha de milho, é outro prato típico das festas juninas do nordeste e que traz a marca da mestiçagem com Portugal. Provavelmente, o termo "xerém" vem do termo falado na língua iorubana da Nigéria e Benim xe'ree, ou seja, um “chocalho” com o qual se anuncia a chegada no terreiro do orixá Xangô, deus do trovão e ligado à justiça – ele é um orixá que na umbanda é, por vezes, coincidentemente sincretizado com São João e São Pedro (CUNHA, A. G. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro. Nova Fronteira. p. 832). Não podemos nos esquecer da rapadura, outrora patenteada em 1990 pela empresa alemã “Rapunzel Naturkost”, que é típica de toda festa junina nordestina, especialmente aquelas culturalmente ligadas ao cultivo e processamento de cana-de-açúcar, cujas mestras mucamas do período escravista criaram as culturas culinárias das zonas da mata açucareiras e do recôncavo Baiano e a exportaram para outras partes do Brasil. Mas, nem só de Bahia vive o Nordeste do país. Em termos da cultura alimentar o Nordeste é tão grande quanto o Brasil.  Além dos produtos de “exportação” que aparecem mais ou menos em festas regionais, o bolo de milho verde, o biscoito de polvilho, quebra-queixo, broa de fubá, batata doce, espiga de milho assada e cozida etc., o forró e as quadrilhas são culturas generalizadas por grande parte do país. As bandas de pífanos ressoam numa das cidades mais juninas do Nordeste, Caruaru.  Enquanto no sertão de Pernambuco os bacamarteiros soltam seus “fogos” em homenagem ao santo padroeiro da festa, no Recife, entre outros pratos, a festa é regrada com bolo de pé-de-moleque (que significa “menino” em português), bolo Souza-Leão e o cuscuz que, diferentemente do cuscuz do sul do país, esse é uma massa de farinha de fubá hidratada e colocada no vapor que pode ser produzido com coco ou milho. As iguarias indígenas não ficam de fora da festa, seja pela Macaxeira, cujo primeiro registro é datado de 1612, a partir do relato da cultura culinária de índios Maranhenses (ver: ABBEVILLE, Claude d'.  Histoire de la Mission des Peres Capucins en l'Isle de Maragnan et terres circonuoisines. A Paris: de I'Imprimerie de François Huby, 1614) seja o pirão, tapioca, a pipoca e o beiju. Lembremo-nos ainda que o bolo de macaxeira (mandioca) se espalhou pelo Nordeste configurando-se como produto elementar das festividades juninas dessas regiões brasileiras.

Nas regiões mais ao sul do pais, aparecem a pipoca, o quentão e vinho quente... já o bolinho caipira (salgado de farinha de fubá recheado com carne) é da Festa de São João de Jacareí e de todo o Vale do Paraíba e foi tombado como patrimônio Histórico Cultural. Em Minas a fogueira joanina não passaria bem sem o curau, paçoca, o bolo de milho e a canjica. Enquanto o fogo da fogueira purifica o inverno brasileiro, o arroz doce, o amendoim, o bolo de macaxeira (mandioca), o pé de moleque, pamonha e a cocada esquentam as bocas dos que entoam hinos, cantigas e canções nos dias de festança. O adocicado sabor que visitou a boca de todos os brasileiros durante cerca de 400 anos proveio do plantio, colheita, processamento do açúcar e elaboração de receitas de culturas mescladas e algumas de origem africana como o curau e a canjica. Das línguas quimbundo e quicongo, que são faladas na Angola e República Democrática do Congo, o termo canjica/Kanjika significa “massa de milho moído” (ver: BURTON, R.F. Exploration of the Highlands of Brazil. London: Tinsley, 1869); já o Curau, provavelmente advém da língua Haussá, falada na África Ocidental, entre outros, em países como Níger, Gana, Camarões e Norte da Nigéria; o termo kuresa, significa “um punhado de milho” nessa língua (ver: MEGENNEY, William. A Bahian Heritage,Chapel Hill, The University of North Caro-lina Press, 1978 e CASTRO, Y.A.P. de. De L'Integration des Apports Africains dans les Parles de Bahia au Bresil. Docteur-es-letttres diss. 2. vols. Lubumbashi: Faculte des Lettres, Universite Nationale du Zaire, 1976. Vol.II p. 210). O Fubá, que é base para inúmeras iguarias juninas em todo país, tem origem entre os falantes africanos da língua quimbundo (ALENCASTRO, Luis Felipe de.  O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 95). 

É com muita religiosidade e amor que os brasileiros festejam a data de São João. Com esse mesmo espírito amoroso que as tradições indígenas, portuguesas e africanas se congregaram em torno da fogueira nos dias de festas... E é justamente numa canção típica de muitas festas juninas há décadas que se pede para que todos pulem com cuidado a fogueira de São João.  Imortalizada na voz de Francisco Alves em 1936, e depois regravada por Pixinguinha e sua Banda em 1956, a letra da marchinha de Getúlio Marinho e João Bastos Filho dizia em seu refrão: Pula a fogueira iaiá, pula a fogueira ioiô, cuidado para não se queimar, olha que a fogueira já queimou o meu amor... Os termos “Iáiá, (yayá) e ioiô (yoyô) eram os modos como os negros escravizados chamavam seus senhores, desde a contração do termo até a criação da forma carinhosa:  Senhora>Sinhá>nhá>iaiá e Senhor>Sinhô>nhô>ioiô.
Quem visitar o acervo de longa duração do Museu Afro Brasil poderá participar deste imenso “arraial artístico” com obras que retratam os Santos Populares desde o séc. XVII. Como destaque chamamos atenção à uma escultura barroca que se aproxima do tamanho real de um São João Batista em madeira, com negros olhos de vidro datada do séc. XVIII, provindo da Bahia. Tanto por seu panejamento (a típica túnica de mártir), quanto pela forma de esculpir a barba, os cabelos e o modo como foi esculpido, bem como o semblante santo mostram que estamos diante de uma obra esteticamente modelar. Parte da iconografia clássica do santo pode ser estudada. Embora a mão direita da escultura esteja vazia, na esquerda ele porta um cordeiro sobre uma bíblia, a que anuncia a chegada do “Cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo” (João 1, 29) – parecendo assim que não será a gula, a adoração personalizada dos santos ou mesmo o incentivo aos encontros sensuais que tirarão a santidade da festa dos santos populares do Brasil.


Núcleo de Pesquisa Museu Afro Brasil



Referências
ABBEVILLE, Claude d'.  Histoire de la Mission des Peres Capucins en l'Isle de Maragnan et terres circonuoisines. A Paris: de I'Imprimerie de François Huby, 1614. Disponível em: https://archive.org/details/histoiredelamiss00clau Acesso:05/06/2017. 
ALENCASTRO, Luis Felipe de.  O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
BURTON, R.F. Exploration of the Highlands of Brazil. London: Tinsley, 1869. Disponível em
http://burtoniana.org/books/1869-Explorations%20of%20the%20Highlands%20of%20Brazil/index.htm
CUNHA, A. G. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro. Nova Fronteira. p. 832.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa — 2ª edição. [S.l.]: Nova Fronteira, 1986.
Páginas da Internet (acessadas em 05/06/2017)
https://www.academia.edu/15554947/Iconografia_de_S%C3%A3o_Pedro

 



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